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“Nossa, mas esse episódio foi cheio de nada”, comentei, enquanto via o quinto capítulo de Pluribus, a melhor série do ano (na minha opinião).
Criada por Vince Gilligan (de Breaking Bad) e estrelada pela atriz Rhea Seehorn, de Better Call Saul, que é do mesmo autor, a atração se tornou a mais vista da Apple TV mundo afora.
Embora não seja uma reflexão sobre tecnologia ou inteligência artificial, temas primários de que a gente trata aqui na coluna, a série me fez pensar bastante sobre essas duas coisas. No caso da primeira, porque vejo MUITA gente reclamando sobre o ritmo dos episódios – eu mesmo fiz isso, como mostrei no parágrafo acima.
É comum que existam discrepâncias entre discurso e prática nas nossas vidas. A gente reclama que a vida é muito acelerada, mas ao primeiro sinal de marcha lenta, volta a se queixar. É para ser rápido ou devagar, afinal?
Pluribus não faz a concessão típica de nossos tempos, de que cada segundo de cada cena tem que ser preenchido com acontecimentos. E, apesar da minha queixa inicial, vi que isso é ótimo! Porque precisamos ser lembrados de que a vida tem ritmos outros que não o dos algoritmos.
Não vou contar aqui sobre a trama da série, porque a graça da coisa é assistir sem saber quase nada – ou o mínimo possível – sobre ela. Dá para dizer que a protagonista, Carol, se vê praticamente sozinha num mundo que acaba de ser profundamente alterado por motivos de força maior. Então, nesse contexto, o tédio e a lentidão fazem todo sentido.
Até porque o silêncio e a calma TAMBÉM comunicam, embora a gente (enquanto sociedade) tenha sido forçado a acreditar apenas em luzes piscando em ritmo quase estroboscópico diante dos nossos olhos.
E o que a inteligência artificial tem a ver com tudo isso?
Normalmente, conteúdo de streaming é otimizado para manter a gente preso diante da tela – e quem faz esse trabalho são os algoritmos. Ou seja, uma das muitas modalidades de IA presentes de maneira invisível no cotidiano. Mas elas aparecem de maneira velada também na trama.
A partir daqui, vai ter que rolar spoiler!

Toda vez que vejo em cena os personagens que se tornaram parte do coletivo humano criado pela interferência dos alienígenas, lembro-me do ChatGPT.
Você já reparou no TANTO que aquelas pessoas se comportam como ele? Eu tinha pensado nisso várias vezes, e fiquei surpreso em ver a querida (e inspiradora) Rosana Hermann comentar algo assim no Instagram dela.
Não só a conexão estilo “colmeia de abelhas” daquelas pessoas dá a elas acesso a todo o conhecimento humano possível – o que as aproxima da lógica dos chatbots treinados com quantidades gigantes de dados – como elas são incapazes de confronto. Só quem já xingou IAs sabe o quanto a anuência delas irrita mais ainda a gente, qualquer hora escrevo sobre isso aqui.
Enfim, Pluribus: fico sempre pensando que se o ChatGPT virasse uma pessoa, seria como aquelas da série.
Não sei se o Vince Gilligan construiu essa semelhança intencionalmente, mas ela abre espaço para pensar sobre o tipo de humanidade que estamos moldando num mundo cada vez mais mediado por máquinas. Convivemos tanto com sistemas desenhados para organizar respostas, suavizar conflitos e manter conversas fluindo que começamos a naturalizar esse padrão, inclusive fora das telas.
Vira e mexe vejo conteúdos que falam que começamos a nos comunicar de maneira cada vez mais parecida com as inteligências artificiais, com aquelas estruturas tipo “não é isso, é aquilo”, uso exagerado de algumas palavras ou escolhas de frases que falam, falam, mas na real não dizem nada.
Eu sei, não dá para afirmar com segurança que isso já seja um fato consumado, mas vários pesquisadores dizem que a tecnologia molda a humanidade tanto quanto é moldada por ela. Então, com certeza existe algo novo surgindo da nossa interação com as IAs. E esse algo se move em velocidade 2.0, mesmo sem saber direito aonde quer chegar. Até que ponto a gente se viciou na rapidez da tecnologia?
Talvez o incômodo que Pluribus provoca venha daí. A série desacelera num mundo treinado para otimizar atenção, eliminar pausas e evitar fricção, enquanto expõe um tipo de coletividade em que tudo funciona bem demais, sem conflito, sem ruído e sem atrito real. Quando a ficção encosta tão de perto no modo como as máquinas foram desenhadas para se comunicar, vale prestar atenção.
Eu ODEIO gente que diz que vai fazer uma provocação (desculpa a sinceridade, mas odeio), então vou propor uma reflexão. E se a gente começar a privilegiar filmes, séries e conteúdos menos frenéticos, como Pluribus? Que tal resistir à marcha enlouquecedora das IAs, à velocidade 2.0 no WhatsApp? Talvez haja um monte de conteúdo bom que só precisava da nossa paciência.
P.S.: Se você vê a série esperando que em algum momento vá aparecer uma explicação sobre o “vírus” alienígena, duvido que isso vá acontecer. Até porque isso é menos importante do que a reflexão que a série propõe sobre a vida contemporânea.
P.S. 2: O que será que as pessoas da colmeia ficam fazendo O DIA INTEIRO?
P.S. 3: Reparou que o povo da colmeia não vê uma obra de arte sequer? Será que obter todo o conhecimento humano anestesia as pessoas a ponto de abstrações perderem a graça?