
Qualquer pessoa que já tenha sido enganada por uma foto feita com inteligência artificial – o que é bem comum hoje em dia – consegue compreender o potencial estrago que a tecnologia representa para a indústria da moda. Não só por tirar trabalho de quem está diante das câmeras, vale esclarecer, mas de todos os profissionais envolvidos. E são dezenas de pessoas, entre as que cuidam da alimentação e limpeza, as encarregadas das roupas, assistentes de fotografia… É gente à beça.
É compreensível, portanto, que a adoção de IA por gigantes do varejo como a Zara cause preocupação. Na semana passada, veio a público a informação de que a marca passou a usar IA para gerar imagens de modelos reais vestindo roupas diferentes, sem a necessidade de novos ensaios fotográficos. O que, para um negócio focado em fast fashion, certamente representa uma economia enorme.
Mas à custa de quem? Como quase sempre, a corda aqui nesse caso arrebenta do lado mais fraco, que é o dos já precarizados profissionais da indústria fashion. Modelos consagradas e fotógrafos de renome tendem a ser menos afetados, porque o prestígio de que desfrutam não permite apenas cobrar cachês mais altos como fornece poder de barganha.
O mesmo não pode ser dito de aspirantes e iniciantes. A Zara, antes de criar imagens com IA, procurou modelos que já haviam posado para algumas fotos e pediu autorização para criar novas imagens a partir daquelas. Ok, é bacana dar esse passo em vez de apenas criar do zero uma campanha com uma modelo de IA e dispensar totalmente os humanos da história. Porém, qual new face poderia se dar ao luxo de dizer que não se sente confortável com essa situação? Qual a garantia de não haver retaliação para contratações futuras?
Zara aderiu a uma tendência iniciada por outras empresas
Embora o caso mais recente de uso de IA envolva a Zara, outras grandes empresas também adotaram. A H&M, por exemplo, anunciou a criação de clones digitais de modelos para uso em campanhas. Em agosto, a marca Guess provocou polêmica ao publicar um anúncio inteiramente feito com IA.
Um dos mantras dos nossos tempos diz que profissionais não serão substituídos por IA, mas por pessoas que aprenderam a usar IA. Isso vale para alguns ramos, mas certamente não para todos, o que é o caso da moda. Que diferença faria um stylist que usa ChatGPT com proficiência num cenário em que a imagem inteira é criada com IA, por exemplo?
Sempre que vem à tona algum caso de uso de IA por grandes marcas fashion, é natural que entidades de profissionais do setor se manifestem. E estão certas em se queixar, mas sem se esquecer de que inteligência artificial precisa ser debatida ANTES da aplicação. Depois da consolidação de seu uso, dificilmente o cenário vai mudar. E, embora meu discurso aqui pareça de alguém avesso à tecnologia, não é o que penso. Simplesmente defendo que ela seja implantada a partir de discussões sérias, porque o que está em jogo é o ganha-pão de muita gente.
Agência brasileira criou avatares digitais de seus modelos
No Brasil, a discussão ganhou contornos próprios com a iniciativa da agência Joy de criar avatares digitais hiper-realistas de modelos reais representados de seu elenco. A proposta é que esses avatares possam ser usados em projetos publicitários e editoriais sem a necessidade de presença física constante, respeitando acordos contratuais e remuneração previamente estabelecidos.
E, embora seja louvável a ideia de tentar tomar as rédeas de um processo de transformação que parece inevitável, cabe a pergunta: no caso de quem está começando, vai haver demanda para a pessoa de carne e osso E para seu avatar? Não existe risco de a pessoa real perder oportunidades em detrimento de seu gêmeo virtual?
A Joy sustenta que não se trata de substituir modelos, mas de oferecer uma nova frente de trabalho em um mercado cada vez mais digitalizado. Ainda assim, a iniciativa levanta questões semelhantes às vistas no exterior, que passam por controle de imagem, privacidade, duração dos direitos concedidos e pela linha tênue entre abrir novas portas ou fechar as poucas que já existem.