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A punição imposta ao padre Júlio Lancellotti, com a interrupção de transmissões on-line da missa e a retirada de sua presença das redes sociais, serve para a gente refletir sobre o velho “quem não é visto, não é lembrado” tão repetido na internet. Em um tempo em que quase toda vida pública passa por telas, feeds e plataformas, decidir quem aparece passou a ser uma forma central de poder.
O veto ao padre Júlio me fez pensar sobre a presença midiática de outros religiosos, e são muitos ao longo das décadas, desde o Padre Zezinho na minha infância aos contemporâneos Marcelo Rossi e Antonio Maria. Por que alguns sacerdotes podem aparecer sem complicações na televisão sem isso virar uma questão? Por que o padre Fábio de Melo pode frequentar com naturalidade o Domingão do Huck enquanto o padre Júlio não pode transmitir uma missa no YouTube? Antes que a conversa aqui degringole: sou a favor de ambos estarem no ar, onde e quando bem entenderem.
Voltando à pergunta, eu diria que a resposta tem a ver com controle. Começa pelo fato de que temos dois sacerdotes com perfis diferentes, o que inclui trabalhos pastorais que caminham em direções diversas.
Mas a coluna aqui fala de tecnologia e inovação, por isso quero centrar a conversa nas mídias. Aparecer na televisão, num programa como o Domingão do Huck, de que o padre Fábio participava mais regularmente em 2024, oferece à igreja uma visibilidade emprestada, mediada, editada. Em outras palavras, domesticada. Aproveita para a instituição religiosa o melhor que uma mídia tem a oferecer, que é o alcance, a chance de impactar literalmente milhões de espectadores, e fazê-lo com menos risco, pois a dinâmica dessa exposição segue regras rígidas típicas do veículo (cada minuto é controlado por uma equipe técnica).
A transmissão da missa pela internet opera em lógica diferente, pois muitas variáveis entram na equação. Quem detém o microfone, detém o poder, aprendemos nas aulas de Jornalismo, e aqui ele não está nas mãos do Luciano Huck, mas nas de um padre. O problema não é falar, é falar sem mediação, de forma reiterada, construindo audiência própria e capital simbólico fora dos circuitos tradicionais de autorização. Muitas pessoas se conectam com o padre e não estão muito ligadas ao catolicismo em si.
Muitos seguidores, muitos fiéis?
Bom, mas até aí, o padre Fábio também está no Instagram, e seria perfeitamente possível dizer isso sobre ele também. Aliás, tem mais de dez vezes a quantidade de seguidores que o padre Julio – um com 25,8 milhões, outro com 2,3 milhões. Não temos uma conexão direta entre esse contingente de admiradores e a frequência em missas. Então a questão não é necessariamente desafiar a visibilidade da igreja.
O que nos leva ao conteúdo da fala desses sacerdotes. Ou seja, mais do que a questão de falar sem mediação, o foco vira para O QUE é falado. De que temas, com quais preocupações, e apesar de o catolicismo do século XXI ter um ou outro viés progressista, existe um imenso contingente conservador que se incomoda com os posicionamentos do padre Julio sobre a inclusão de minorias. Não estou avaliando se isso é certo ou não, apenas relatando a situação. Minha visão pessoal de que religião devia trazer à tona O MELHOR das pessoas (e não o contrário) importa menos aqui do que descrever o contexto.
Mas, de novo, voltemos às mídias.
O silenciamento contemporâneo raramente assume a forma clássica da censura. Não há proibição explícita, processo público ou confronto aberto. O que há é a retirada de circulação. No ambiente digital, punir não significa calar alguém à força, mas reorganizar o espaço onde sua fala poderia produzir efeitos. Cancelamentos, suspensões, desmonetizações e quedas súbitas de alcance operam como sanções eficazes justamente porque são técnicas, administrativas e aparentemente neutras. Você não proíbe a pessoa de falar, mas desliga a caixa de som, digamos.
Um eco histórico curioso
Na Roma imperial, a damnatio memoriae era a punição reservada àqueles cuja lembrança se tornara inconveniente. Não se destruía apenas o corpo, mas a memória pública. Nomes eram raspados, estátuas mutiladas, imagens apagadas. O objetivo era reorganizar o passado para legitimar o presente. A internet possibilita fazer isso em escala ampla: retirar alguém dos fluxos de visibilidade é uma forma contemporânea de apagamento simbólico, menos barulhenta e talvez mais eficaz.
A tecnologia aparece no centro dessa história porque não estamos falando apenas de decisões humanas isoladas, mas de infraestruturas técnicas que organizam o que vemos. Algoritmos de recomendação, sistemas automatizados de moderação e métricas de engajamento definem quem aparece, para quem e com que intensidade. Antes de existir diante dos olhos de inteligências humanas, temos de existir diante das inteligências artificiais.
A vida hoje passa necessariamente por plataformas digitais, e se isso não parece claro, pense em quantos aplicativos você usa no seu dia, seja para pedir um carro ou para falar com sua família. Vetar nesses ambientes a presença de alguém que recebeu como missão o ensinamento bíblico de “ir por todo o mundo e pregar o Evangelho a toda criatura” parece ainda mais sério.
Em uma sociedade mediada por plataformas inteligentes, desaparecer do feed equivale a perder existência pública. É a damnatio memoriae romana atualizada.