
A expressão “destruição criativa” foi cunhada pelo economista austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950), mas foi com o canadense Peter Howitt, o francês Philippe Aghion e o americano-israelense Joel Mokyr, da década de 1990 em diante, que a ideia se tornou uma teoria com base empírica. Howitt e Aghion desenvolveram um modelo matemático capaz de demonstrar como a inovação impulsiona o crescimento econômico, enquanto Mokyr analisou o fenômeno do ponto de vista histórico. Por esse trabalho, os três foram laureados com o Prêmio Nobel de Economia deste ano. Na entrevista a seguir, Peter Howitt, professor da Universidade Brown, nos Estados Unidos, sustenta que o progresso depende de rupturas tecnológicas — como a desencadeada atualmente pela inteligência artificial (IA), que ele se recusa a chamar de bolha. “A tecnologia destrói empregos, setores e modelos de negócio no curto prazo, mas é isso que cria os empregos, setores e mercados que ainda não existem”, diz Howitt. O saldo é positivo, desde que a sociedade e as instituições forneçam um ambiente competitivo e cooperativo para a inovação, “sem a qual o mundo entra em estagnação”.
Qual o impacto real da IA? Primeiro, veremos empregos ser substituídos — o lado visível. Depois, surgirão novas funções, novas habilidades e modelos de negócio que vão gerar produtividade real. Ainda não está claro quem vai se beneficiar mais, mas o processo já começou com um boom de investimentos em IA. Há uma corrida para se tornar líder, mas nem todas as empresas chegarão lá. Muitas apostas vão falhar.
Quem está mais vulnerável no mercado de trabalho? A IA substitui principalmente análises e interpretações de grandes volumes de dados, fazendo isso de modo mais rápido, eficiente e preciso que os humanos.
Pode dar exemplos? Na medicina, radiologistas que analisam exames podem ser parcialmente substituídos por sistemas treinados com milhões de imagens, capazes de identificar padrões e diagnosticar doenças com precisão — às vezes superior à humana. Mas isso não significa o fim da profissão.
Então a IA vai substituir radiologistas? Não totalmente. Ela vai aumentar drasticamente a produtividade. Diagnósticos vão ser feitos mais rapidamente, com mais precisão. Isso libera os médicos para um papel mais humano: cuidar de pacientes doentes, oferecendo empatia e atenção direta. As soft skills (habilidades comportamentais, subjetivas) se tornam mais valiosas com a tecnologia. O número de profissionais poderá diminuir, mas os que permanecerem serão muito mais eficientes e estratégicos.
Muitos falam sobre uma possível bolha da IA. Qual sua opinião? O termo “bolha” é exagerado, mas o fenômeno é clássico. Sempre que surge uma nova tecnologia, há grande incerteza sobre o caminho certo. Todos veem potencial de liderança, mas não sabem quem vai chegar lá nem como chegar. Diferentes empresas seguem estratégias distintas. Historicamente, vimos isso no boom ferroviário do século XIX: muitas empresas quebraram, algumas lideraram e geraram enormes ganhos de produtividade. Hoje, estamos vendo algo parecido com a IA.
“Para países emergentes, como o Brasil, o caminho mais eficaz é o chamado ‘catch-up’: adotar tecnologias estrangeiras e aprimorá-las. Inovar de forma original exige muito mais”
E quanto à regulamentação? Há riscos que preocupam? É claro que alguma supervisão governamental é necessária, para garantir que a tecnologia funcione a nosso favor, e não contra nós. Há também um desafio social: como lidar com os empregos que serão destruídos. Toda inovação gera conflito entre o novo e o antigo. Se apenas alguns se beneficiarem enquanto muitos perderem o sustento, o processo não será sustentável. É do interesse de todos criar soluções equilibradas.
Existem políticas eficazes nesse sentido? Sim. Meu coautor, Philippe Aghion, e eu admiramos o modelo escandinavo de “flexicurity” (junção das palavras flexibilidade e segurança, em inglês), que ajuda as pessoas a se requalificarem e encontrarem empregos em que sua habilidade seja valorizada. Além disso, políticas públicas podem guiar empresas a desenvolverem tecnologias que aumentem a produtividade dos trabalhadores, em vez de simplesmente substituí-los. Pequenas escolhas podem fazer grande diferença.
A exemplo de outras tecnologias que mudaram os rumos dos negócios, a IA será uma força de destruição criativa com impacto sobre o crescimento do produto interno bruto (PIB), área de estudo que rendeu ao senhor e a seus colegas o Nobel? É simples: novas tecnologias tornam trabalhadores e máquinas mais produtivos. Quando a produtividade aumenta, o mesmo capital produz mais, os salários sobem, os lucros aumentam e a “torta econômica” cresce. Sem inovação tecnológica, não há crescimento real.
Historicamente, houve rupturas tecnológicas que destruíram empregos, enquanto os benefícios econômicos e sociais demoraram a aparecer. Isso não é negativo? A eletricidade, as máquinas a vapor, os computadores e, hoje, a inteligência artificial causaram medo de perda de empregos e obsolescência de habilidades. Nem todos se beneficiam de imediato, mas a sociedade como um todo colhe os frutos no longo prazo. As gerações seguintes entram em um mundo onde tecnologias antigas já não importam e direcionam educação e investimentos para o novo, criando riqueza e oportunidades inéditas. Sem inovação contínua, o mundo entra em estagnação.
Mas por qual motivo algumas tecnologias revolucionárias demoram tanto tempo para causar impacto positivo na economia? Tecnologias de uso geral — como a eletricidade ou os computadores — precisam de tempo para mostrar impacto, pois, no início, ninguém sabe exatamente como explorá-las. Há investimentos que não dão retorno, coexistência com tecnologias antigas e erros de caminho. Além disso, parte do aumento de produtividade gerado por novas tecnologias simplesmente não aparece nas estatísticas oficiais.
Existe algum dado que mostre esse fenômeno? Sim. O crescimento do PIB per capita nos Estados Unidos, por exemplo, poderia ter sido cerca de 0,5 a 0,6 ponto percentual maior por ano se essas inovações fossem totalmente contabilizadas nas estatísticas. Em outras palavras, parte do crescimento está escondida — as empresas ficam mais produtivas e surgem novas oportunidades, mas os números do PIB demoram a refletir essa evolução. Toda tecnologia de grande alcance destrói algumas competências, multiplica outras e cria necessidades novas. Mas os ganhos reais podem levar décadas para ser percebidos.
Hoje, algum país consegue transformar inovação em produtividade e crescimento? Não há um único líder global em inovação. A China, por exemplo, já domina vários setores tecnológicos e atua na fronteira da inovação, criando produtos e tecnologias originais. Para países emergentes, como o Brasil, o caminho mais eficaz ainda é o chamado catch-up (“alcançar”, em inglês): adotar tecnologias estrangeiras e aprimorá-las. Mas chegar à fronteira tecnológica é apenas o começo. Nesse estágio, inovar de forma original exige muito mais — investimentos robustos, capacidade de competir globalmente e instituições sólidas que sustentem o progresso.
“A expressão ‘bolha da IA’ é exagerada, mas o fenômeno é clássico. Sempre que surge uma nova tecnologia, há grande incerteza sobre o caminho certo. Vimos isso no boom ferroviário do século XIX”
A política protecionista de Donald Trump vai contra a destruição criativa? Medidas protecionistas reduzem incentivos à inovação. Quanto mais aberto ao comércio, mais exposto um país está a novas ideias, e maior a necessidade de competir. A consequência é simples: quanto menor o mercado, menor o potencial de lucro e menor o estímulo para investir em pesquisa e novas tecnologias. Qualquer barreira ao comércio internacional reduz o incentivo à inovação. A abertura ao mercado global permite que países aprendam com novas tecnologias e produtos desenvolvidos no exterior — não apenas para imitá-los, mas para competir com eles. Esse processo impulsiona a inovação interna.
Qual o efeito dessa competição? O efeito mais direto é econômico: desenvolver novas tecnologias exige altos investimentos em pesquisa. As empresas só investem quando enxergam retorno — determinado pelo tamanho do mercado. Restringir o comércio encolhe o mercado: menos vendas potenciais significam menos lucro e menos incentivo para inovar. O resultado? Menos pesquisa, menos tecnologia e menor crescimento econômico.
Qual é o papel das instituições públicas na inovação? Instituições fortes são essenciais nesse processo: proteção à propriedade intelectual, regras claras de concorrência, estabilidade regulatória e um ambiente financeiro funcional. O talento existe, mas só se transforma em progresso econômico quando encontra uma estrutura que o sustente.
Quais instituições estão em declínio hoje e por quê? As instituições mais vitais para a inovação — governos que financiam pesquisa, universidades que produzem conhecimento e empresas que investem em tecnologia — estão enfraquecendo em todo o mundo. Esses pilares dependem de abertura, colaboração e visão de longo prazo, mas essas qualidades muitas vezes entram em choque com interesses consolidados. Empresas dominantes tentam proteger seus mercados, políticas protecionistas e mudanças regulatórias abruptas enfraquecem a cooperação entre setores e barreiras culturais atrasam investimentos em pesquisa. Quando esses eixos perdem força, a inovação desacelera e o progresso econômico para.
O Brasil tem potencial de inovação? Sim. Setores como o aeronáutico têm capital humano extremamente produtivo. O país tem recursos para liderar tecnologicamente em áreas específicas e já demonstrou isso.
Como o senhor vê a relação entre governo e ciência? A cooperação entre governo e comunidade científica é absolutamente estratégica. Governos que apoiam a ciência e a tecnologia criam um ecossistema onde universidades, empresas e centros de pesquisa podem investir em projetos de longo prazo, compartilhar conhecimento e transformar talento em inovação concreta. Sem esse suporte, até países com mão de obra altamente qualificada enfrentam dificuldades para gerar avanços consistentes. Quando a cooperação entre governo e ciência se enfraquece, o ritmo da inovação desacelera, oportunidades são perdidas e o país corre o risco de ficar para trás no cenário global.
Publicado em VEJA de 5 de dezembro de 2025, edição nº 2973