O ex-presidente francês Charles de Gaulle, que liderou a França durante a Segunda Guerra Mundial, fez uma pergunta famosa: “Como alguém pode governar um país com 246 variedades de queijo?”
Mais de 60 anos depois, a resposta parece ser: ninguém.
Com mais um governo à beira do abismo, a França parece ter se tornado ingovernável. Na segunda-feira (8), François Bayrou, com menos de um ano no cargo, pode se tornar o quarto primeiro-ministro a deixar o cargo em menos de dois anos. O destino de seu governo depende de um voto de confiança no parlamento que, se perdido, deixaria o presidente do país, Emmanuel Macron, mais fraco do que nunca.
Bayrou convocou a votação em uma tentativa de aprovar um impopular plano de cortes de gastos de 44 bilhões de euros, que inclui o cancelamento de dois feriados e o congelamento de despesas. Ele diz que é uma questão de “sobrevivência nacional”, alertando que a França deve controlar a sua dívida, que aumentou “12 milhões de euros a cada hora nos últimos 20 anos”.
Estas podem ser palavras alarmistas para estimular as classes políticas rebeldes do país a tomar medidas urgentes, embora a reforma orçamentária tenha sido justamente o que derrubou o premiê antecessor, Michel Barnier. Ele durou apenas três meses no cargo e não conseguir convencer os franceses a aceitarem cortes radicais nas despesas.
Com a França mergulhada cada vez mais na instabilidade política, os custos dos seus empréstimos estão subindo. Os rendimento dos títulos do Tesouro a 10 anos ultrapassaram os da Espanha, Portugal e Grécia – países que já estiveram no centro da crise da dívida da Zona do Euro – e se aproximam dos da Itália. A economia enfrenta a pressão crescente, o que contradiz a imagem de homem forte que Macron quer projetar.
E, no entanto, a instabilidade atual pode ser atribuída à decisão dramática de Macron de convocar eleições antecipadas no ano passado.
Incomodado pelos resultados notáveis do partido de ultradireita União Nacional, de Marine Le Pen, nas eleições europeias de maio de 2024, o presidente francês convocou uma votação parlamentar que levou o próprio partido a perder assentos para a ultradireita e para a esquerda radical, deixando a França com uma Assembleia dividida.
Mas não precisava ser assim. A Quinta República, fundada pelo presidente de Gaulle em 1958, foi concebida para acabar com a instabilidade crônica que assolou a França no início do século 20. A nova constituição deu amplos poderes ao executivo e criou um sistema majoritário para evitar governos de curta duração. Como resultado, durante décadas, dois partidos dominantes de esquerda e de direita alternaram-se no poder.
Macron explodiu essa ordem em 2017, quando se tornou o primeiro presidente eleito sem o apoio de nenhum dos principais partidos políticos estabelecidos. Reeleito em 2022, rapidamente perdeu a maioria parlamentar à medida que os eleitores migravam para os extremos.
Depois disso, foram dois anos de governo frágil, em que Macron foi forçado a invocar o artigo 49.3 da Constituição para aprovar leis sem votação da Assembleia. Isso aumentou o descontentamento entre os parlamentares da oposição e entre grande parte do público francês.
Nas eleições antecipadas de 2024, a esquerda conquistou o maior número de assentos no segundo turno, mas ainda não conseguiu a maioria. As esperanças de formar um governo minoritário acabaram quando Macron se recusou a aceitar a escolha da esquerda para o cargo de primeiro-ministro.
Ao contrário da Alemanha ou da Itália, a França não tem tradição de formar de coligações, já que a política tem sido moldada por mais de 60 anos por um sistema dominado pela presidência.
O que acontece agora?
Se Bayrou cair, a pressão para que Macron renuncie vai aumentar, embora o presidente tenha prometido cumprir o mandato completo. A líder de ultradireita Marine Le Pen exige que Macron dissolva o parlamento, mas novas eleições provavelmente fortaleceriam o partido dela, o União Nacional, e dividiriam ainda mais a Assembleia.
Outro caminho seria Macron nomear um governo provisório enquanto avalia um sucessor. O ministro das Forças Armadas, Sébastien Lecornu, e o Ministro da Justiça, Gérald Darmanin, seriam os principais cotados.
O problema é que depois de três primeiros-ministros centristas fracassados, os partidos da oposição não estão dispostos a dar uma oportunidade a mais um. Tanto a ultradireita como a esquerda radical sinalizaram que pediriam um voto de desconfiança imediatamente.
Outra opção seria nomear um primeiro-ministro mais ao extremo do espectro político, mas uma escolha de premiê de direita seria bloqueada pela esquerda e vice-versa.
O clima político é sombrio. No caso de outra eleição parlamentar antecipada, uma pesquisa recente da Elabe sugere que o União Nacional sairia por cima, com a esquerda em segundo lugar e o centro em terceiro, muito atrás.
Muitos acreditam que a ultradireita acabará conquistando o poder – se não agora, então nas próximas eleições presidenciais em 2027, mas com poucas expectativas de que isso resolveria a turbulência. A confiança pública na classe política entrou em colapso, e a raiva será refletida nas ruas no dia 10 de setembro, com protestos a nível nacional sob a bandeira Bloquons tout (“vamos parar tudo”).
Tudo isto acontece no pior momento possível, em meios às guerras na Ucrânia e no Oriente Médio. A instabilidade em Paris é um presente tanto para o presidente russo, Vladimir Putin, como para o presidente dos EUA, Donald Trump, que zombam das fraquezas da Europa.
Dominique Moïsi, analista sênior do think tank Institut Montaigne, com sede em Paris, diz que não se lembra de um momento de impasse tão profundo na Quinta República.
“De Gaulle sobreviveu às tentativas de assassinato, houve a guerra da Argélia, em maio de 1968 o slogan era ‘la France s’ennuie’ (a França está entediada). Mas hoje a França está frustrada, furiosa, cheia de ódio contra a elite”, disse ele à CNN.
“Parece que uma mudança é inevitável, mas não consigo ver como isso acontecerá e quem fará o trabalho. Estamos numa fase de transição entre um sistema que já não funciona e um sistema que ninguém pode imaginar.”
De Gaulle foi o presidente que, apesar de seus questionamentos sobre queijo, inaugurou um período de relativa estabilidade em 1958 em França, com o início da Quinta República. A questão agora é se Macron será o presidente que acabou com tudo.