Como saber se a IA faz mal pros seus filhos?

Os pais de um adolescente de 16 anos que cometeu suicídio em abril deste ano entraram na Justiça contra a OpenAI, empresa criadora do ChatGPT. A família considera que interações do rapaz com o modelo de inteligência artificial teve papel direto na morte do rapaz, Adam Raine, e quer que a organização seja condenada por homicídio culposo.

Segundo reportagem do New York Times, o modelo de IA GPT-4o teria ajudado Adam a explorar métodos de tirar a própria vida, falhado em conduzir o jovem a pedir ajuda após detectar que estava em perigo e até sugerido como ocultar marcas no pescoço, além de auxiliar a redigir uma carta de despedida.

Uma tragédia como essas, para além de deixar marcas indeléveis nos envolvidos, sinaliza para o resto de nós que alguma coisa está fora da ordem. Muito. Até que ponto a tecnologia que deveria ser uma aliada pode se tornar justamente o contrário? Como saber se a interação com IAs e conteúdos da internet faz mal a crianças e adolescentes?

Novas tecnologias de propósito geral exigem um tempo de assimilação e aprendizado. Pense no surgimento da eletricidade e em quantas décadas levou até que toda casa fosse iluminada por ela, por exemplo. Com a IA é tudo mais veloz e intenso. Estamos todos atordoados, tomando pé da situação, e isso pode ser perigoso especialmente para os mais jovens. Além disso, nenhuma inovação anterior se integrou à intimidade das pessoas de maneira tão profunda, o que é mais um motivo para atenção.

É fundamental explicar que apesar de convincentes nas interações, as IAs não são um substituto à altura para a troca com outros humanos.
É fundamental explicar que apesar de convincentes nas interações, as IAs não são um substituto à altura para a troca com outros humanos. (Midjourney/Alvaro Leme/Reprodução)

A mesma geração que consideramos ter “mais jeito” para tecnologia acaba exposta em níveis que ainda não conhecemos a fundo. Pessoas ainda em formação (fisiológica, escolar, filosófica) lidam com tecnologias marcadas por um beta constante, e isso demanda atenção extra dos responsáveis.

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Que sinais devem ser levados em conta, então?

Sintomas de que a interação com IAs tem sido nociva são parecidos com os outros vícios digitais: isolamento social, perda de interesse em hobbies e atividades fora do ambiente digital, oscilações de humor e ansiedade.

No caso da IA, a atenção deve ser redobrada caso se note que há busca constante por validação ou companhia na ferramenta – ela, que está sempre disposta a ouvir e pronta para oferecer um ombro amigo, não deve substituir interações reais. Por isso mesmo, o segundo ponto de atenção é para a criação de uma dependência emocional em relação ao chatbot. Em casa, isso pode se refletir em mudança na linguagem e no comportamento do jovem.

Como os pais podem proteger seus filhos

Uma estratégia que pode ser útil é a supervisão inteligente e equilibrada. Ou seja, a que caminha na linha tênue entre estar plenamente interessado no que o adolescente faz e não deixar que isso o espante ou que ele se retraia.

É importante explicar de maneira clara o que o ChatGPT e seus congêneres são, o que podem entregar e, mais do que qualquer coisa, o que eles NÃO podem fazer. Leia-se: explicar que são ferramentas que simulam conversa, mas não têm empatia de verdade. E que apesar de serem extremamente convincentes nas interações, não são um substituto à altura para a troca com outros humanos.

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O adolescente precisa entender que, apesar de a IA fazer parecer que ele está sempre correto – ou seja, que dificilmente vai levar uma bronca da ferramenta –, ele nunca vai ser realmente cuidado ou protegido por ela. O caso de Adam mostra que pode ser justamente o contrário.

Tempo de tela: o grande debate

Estabelecer limites claros também é fundamental, porque a gente conhece o poder magnético que as tecnologias de hoje em dia possuam. Se nós, que já temos tempo de estrada, caímos facilmente nas tocas de coelho que levam de um vídeo para o próximo, imagina eles?

Uma relação saudável com a IA (ou com o smartphone, as redes sociais, o streaming e afins) passa necessariamente por determinar tempo de uso, horários livres de tela e incentivo a atividades presenciais e sociais. Autores como Jonathan Haidt, de A Geração Ansiosa, defendem que nenhuma criança deveria possuir um celular antes dos 14 anos, nem acessar redes sociais antes dos 16, além de orientar que qualquer aparelho de acesso à internet seja retirado do quarto deles na hora de dormir.

Sabemos que propostas assim beiram o utópico para muitos lares, mas é um debate fundamental para a sociedade que a gente tem intenção de construir pras próximas gerações. Talvez um caminho mais viável seja a liberação progressiva de telas conforme a faixa etária, como sugere o expert em vida digital Gary A. Bolles. Fiz uma entrevista com ele semana passada (em breve publico na íntegra aqui na coluna), e ele diz o seguinte:

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“Se você conseguir manter zero ou quase zero exposição a telas até os 3 anos de idade, é o ideal. A partir daí, meia hora por dia até os 5 anos, considerando todas as interações com tecnologia – inclusive a televisão. Isso é extremamente difícil nessa idade. Mas conforme eles crescem, você precisa estimular a criação de regras em conjunto, até que sejam capazes de se autoregularem”

O especialista Gary Bolles:
O especialista Gary Bolles: “Zero exposição a telas até os 3 anos de idade, é o ideal” (IT Forum Praia do Forte/Divulgação)

Sempre que possível, esteja ao lado da criança ou adolescente ao usar IA, e busque revisar periodicamente o histórico de uso. Muitas plataformas oferecem ferramentas de controle parental, então faça uso delas. Em alguns casos isso vai esbarrar no “ai, não me entendo com tecnologia”, uma barreira geracional que vamos todos ter de superar. Busque um amigo ou um tutorial na internet para obter ajuda com esse tipo de mecanismo.

Estimule a abertura ao diálogo familiar, com escuta ativa e estímulos para que o jovem verbalize suas emoções. É fundamental fortalecer os vínculos com gente de carne e osso, mesmo com todas as nossas limitações, que parecem saltar ainda mais aos olhos num cenário de máquinas capazes de entregar em tempo recorde respostas que muitos de nós precisam de dias para alcançar.

A IA parece mágica, isso é encantador, mas ela tem que ser apresentada como um complemento, nunca um substituto do toque humano.

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