Como a prostituição foi remodelada pelas ferramentas de IA

Talvez você tenha caído neste texto sem ter ideia do que significa “do job”, então a conversa precisa começar com uma explicação.

Se para a minha geração “job” significava um anglicismo desnecessário (porém amplamente utilizado) para se referir a trabalhos esporádicos, os mais jovens decidiram que a ideia de frila – que também tem origem no inglês, aliás – devia ser aplicada à prostituição. Entendeu, né?

O encontro dessa ressignificação com a tecnologia deu origem às IAs do job: personagens virtuais hiper-realistas, geralmente femininas, feitas por inteligência artificial. Elas aparecem em fotos e vídeos ou perfis em redes sociais e plataformas adultas – e faturam alto com fãs dispostos a pagar por conteúdo exclusivo e interações via texto.

Até aí, desde que todos os envolvidos sejam adultos, nada de mais. O problema é que tem uma série de questões éticas envolvidas.

A bela da tela. Ou não…

A prática da IAs “do job” explodiu após popularização de conteúdos virais no TikTok e Instagram, que por sua vez deu origem a dezenas de cursos online. Ofertas de “mentorias” e “formações” prometem ensinar a faturar entre até R$500 por dia criando e vendendo imagens de “mulheres virtuais”.

Não me dei o trabalho de comprar um curso, obviamente. Mas pelo que pesquisei, muitos deles são enganação pura e rolou até queixa no Reclame Aqui.

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Outra área cinza que tem a ver com a transação comercial: os criadores de mulheres virtuais “do job” miram em homens mais velhos, solitários. Muitas vezes esses clientes interagem com a IA sem se dar conta que a beldade do outro lado da tela é coisa de outro mundo (o virtual, no caso). Ou mesmo que em algum ponto da, digamos assim, jornada do consumidor interagiram por direct messages com outras pessoas pensando que era a bela da tela – a rima foi intencional.

O surgimento do cafetão virtual

Mas o aspecto mais preocupante dessa indústria é a recorrência do uso de imagens de terceiros sem consentimento. Alguns cursos ensinam explicitamente, ou sugerem, que vídeos e fotos podem ser baixados de redes sociais (sobretudo de mulheres de outros países, o que dificultaria serem descobertos), para que seus rostos sejam substituídos por outros por meio de IA – aquela prática conhecida como deepfake, da qual já comentei em outros textos.

Cursos oferecidos na internet prometem renda fácil com personagens virtuais. Outra aplicação tem sido bonecas com IA, em bordéis cibernéticos
Cursos oferecidos na internet prometem renda fácil com personagens virtuais. Outra aplicação tem sido bonecas com IA, em bordéis cibernéticos (Midjourney/Reprodução)

O fato é que uma nova indústria se configurou em torno de personagens de IA, e assim uma profissão antiga ganhou roupagem futurista: nasceu o cafetão virtual. Que pode também ser chamado de cafetão de IA, electronic pimp ou similares. Por um lado, é melhor pensar que a exploração se limita a gente que não existe no mundo de carne e osso. Por outro, como vimos, muitas vezes é exatamente gente como a gente (desde que bonita) que serve como matéria-prima.

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A ironia, aqui, é que enquanto a IA tem exterminado vários empregos, nesse caso serviu para reformular e expandir a atividade.

A era dos bordéis cibernéticos

A inteligência artificial no sexo tem também uma versão física. Em Berlim, existe um bordel cibernético. O Cybrothel, inspirado em experiências do Japão, fez bastante barulho no Brasil há uns meses, após a visita da jornalista Isabella Menon, da Folha de S. Paulo, que foi lá conhecer para relatar.

É um espaço em que as pessoas podem agendar encontros com garotas de programa que não são humanas. São bonecas hiper-realistas equipadas com inteligência artificial, capazes de conversar e reagir ao toque. A casa oferece a criação de uma atmosfera personalizada para cada visitante.

O serviço inclui desde interações verbais até experiências sensoriais com óculos de realidade virtual. O preço varia bastante: uma hora com uma boneca de categoria básica custa cerca de 99 euros, mas pacotes mais completos R$ 10 mil, dependendo dos extras escolhidos.

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E que extras são esses? Boneca pré-aquecida, por exemplo. Também contam como extras modalidades de pornografia em realidade virtual, passar a noite com um quarteto de bonecas e até experiências para casais ou grupos.

No Brasil, até onde consegui pesquisar com ajuda de uma IA (que não era “do job”), não tem. Não achamos registros de bordeis cibernéticos físicos desse tipo.

Estereótipos, preconceitos e objetificação

Para deixar clara a diferença: o bordel cibernético envolve interação física com bonecas ou bonecos equipados com IA, em um espaço físico. Já as IAs do job são personagens virtuais, criadas para vender conteúdo adulto online, sem qualquer presença física. Ambos usam inteligência artificial, mas de formas e em contextos diferentes.

Uma coisa que eu achei curiosa é que tem estabelecimentos em que as bonecas realistas ainda não falam, daí eles contratam umas pessoas pra simular a voz. Meio que uma dublagem ao vivo, sabe? Na hora do ato, uma pessoa (numa sala separada) fala no lugar da boneca, usando um sistema de áudio conectado ao dispositivo.

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É importante pontuar que o Cybrothel já enfrentou críticas de especialistas e organizações feministas, que alertam para o risco de reforço de estereótipos, vieses de IA (que frequentemente acham que mulher bonita é sinônimo de mulher branca) e objetificação. Tenho certeza de que ainda vão rolar MUITOS debates a respeito, porque é um desdobramento da tecnologia que acredito que vá avançar consideravelmente nos próximos anos.

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