‘Encontrar o equilíbrio é essencial’, diz executiv…

Os avanços da inteligência artificial (IA) conduzem a civilização a um novo tempo, em onda incessante. Na semana passada, o Google anunciou um inédito motor de busca, o AI Mode (“modo IA”, em tradução livre), mecanismo que agregará ao campo de pesquisa recursos de ponta, que autorizem perguntas mais longas e diálogos. Para os executivos da empresa do Vale do Silício, será uma “reinvenção”. O próprio Google, aliás, tem se reinventado diante da revolução dos algoritmos que ele mesmo ajudou a inaugurar. A onipresença da IA mudou o curso da história. Trata-se, agora, de seguir os saltos da tecnologia, mas também de zelar pelos nós jurídicos que brotam com velocidade da demanda universal por algum tipo de regulamentação, para evitar abusos e mentiras. O americano Kent Walker, presidente de assuntos globais do Google e da Alphabet, é um dos líderes dessa fascinante etapa de transformação. Na próxima semana, ele estará em São Paulo, para participar de um evento da empresa, e em Brasília, onde acompanhará as discussões no Congresso em torno do projeto de lei que pretende impor algum controle ao uso de IA. Walker conversou com VEJA antes da viagem. A seguir, os principais trechos da entrevista.

A inteligência artificial (IA) precisa ser regulamentada? Sim, é oportuno estabelecer mecanismos de proteção para novos usos específicos da IA. Contudo, é crucial lembrar que muitas leis atuais — contra difamação, fraude, falsidade ideológica, entre outras — já se aplicam à IA, assim como em relação a tecnologias anteriores. O caminho é construir uma teia jurídica em torno do arcabouço legal já existente, identificando lacunas pontuais.

Há urgência? Regulamentar tarde demais pode ser ineficaz, pois a tecnologia já estará consolidada; regulamentar cedo demais pode sufocar a inovação, antes mesmo de compreendermos o potencial e as particularidades. Encontrar esse equilíbrio é essencial.

E como encontrá-lo? Ao regulamentar a IA, consideramos três pilares. O primeiro é a inovação, e para alimentá-la precisamos proteger a privacidade e os direitos autorais, além de garantir que os resultados da IA sejam seguros. O segundo pilar é o da infraestrutura, porque as ferramentas de IA demandam novas fontes de energia e data centers adaptados. Finalmente, como terceiro ponto crucial, não se pode deixar de orientar os governos a usar a IA para otimizar os serviços públicos, em decisões que inspirem também o setor privado.

Há, no mundo, diferentes abordagens de regulamentação da IA. Quais são os bons exemplos? Países como Singapura e Japão adotam posturas a favor da inovação, um pouco menos restritivas, de modo a fomentar as lideranças. Parte das nações europeias, contudo, decidiu por controles mais severos, e é natural que o acesso a modelos recentes de IA fique limitado. Enfim, não há um molde comum. Diferentes regiões, diferentes culturas pedem soluções particulares, ainda que possa haver respostas mais abrangentes. Nos Estados Unidos discute-se no Congresso uma regulamentação federal unificada, em postura sensata. Afinal, questões como privacidade e direito de apelação, com a possibilidade de extração de alguns conteúdos de detentores de informação dos modelos de IA, são temas afeitos a regras comuns. Não esqueçamos de um outro capítulo fundamental, que exige controle: as deepfakes e o material de abuso sexual infantil.

Continua após a publicidade

“A China é um concorrente formidável: forma quatro vezes mais cientistas da computação que os EUA e com um foco governamental claro no desenvolvimento e na adoção da IA”

No Brasil, com um projeto de lei em tramitação no Congresso, o movimento de regulamentação é bom? Acompanhamos ativamente a discussão em Brasília. O Brasil pode aprender com as boas experiências internacionais, para não emperrar a inovação e tampouco descuidar da necessária atenção com a IA. Na Europa, houve a implementação de normas extensas que, agora, se mostraram complexas na prática. Cerca de 150 empresas europeias fizeram um alerta: o excesso regulatório poderia frear a adoção da IA e prejudicar a competitividade do continente.

O que fazer, então, para não barrar a expansão econômica e, ao mesmo tempo, evitar o vale-tudo? A regulamentação deve levar em conta os riscos, que existem, sim. Não dá para reinventar a roda. A IA é, em essência, uma evolução de algoritmos e modelos matemáticos já utilizados em setores como o bancário e o de saúde. Nem sempre são necessárias novas leis para tudo, o tempo todo. Muitas vezes, basta interpretar as normas existentes à luz dos novos saltos tecnológicos, e certamente estaremos em um bom ponto.

Continua após a publicidade

A corrida pelos avanços da IA virou disputa internacional, ao envolver os setores público e privado. Pode-se dizer que é uma modalidade diferente de Guerra Fria. Para onde essa competição nos levará? A competição é, de fato, global, envolvendo os Estados Unidos, a China, mas também o Oriente Médio e a Europa. Diversos países estão desenvolvendo seus próprios modelos de IA. É movimento salutar, por alimentar o desenvolvimento de novas ideias e recursos. Esperamos que essa corrida seja de soma positiva, estimulando avanços que beneficiem a todos. Uma cura para o câncer, por exemplo, acelerada pela IA, e não importa em que país tenha sido alcançada, é bem universal.

Há risco de vivermos conflitos diplomáticos, ou mesmo bélicos, atrelados a essa batalha pela IA? É fundamental notar que, em questões de segurança nacional, já existe um acordo entre Estados Unidos e China para não usar IA no lançamento de mísseis nucleares. Com o tempo, esperamos que surjam mais barreiras de proteção e padrões adequados. Mas, acima de tudo, vivemos o limiar de uma extraordinária nova era tecnológica, com motivos de sobra para otimismo em torno da colaboração global.

A China, em particular, merece atenção? A China é um concorrente formidável, formando quatro vezes mais cientistas da computação que os Estados Unidos. O governo tem claro cuidado com o desenvolvimento e a adoção da IA. Recentemente, o presidente Xi Jinping dedicou um dia inteiro de reuniões ao tema, e as empresas chinesas são incentivadas a usar IA cotidianamente para impulsionar o progresso — e, parece não haver dúvida, quanto mais as ferramentas são usadas, melhor se tornam. Os Estados Unidos, as nações europeias, o Brasil — todos precisam levar essa competição a sério e continuar a investir, com dinheiro público e privado. É crucial aprimorar a tecnologia, incentivar o uso e garantir infraestrutura.

Continua após a publicidade

No caminho do louvável progresso e da ampliação de mercados, muitas empresas de tecnologia, como o Google, têm sido alvo de processos por monopólio. Como o senhor avalia a relação entre as autoridades dos Estados Unidos e as big techs? Como se costuma dizer, é uma relação complexa. Interagimos com o governo dos Estados Unidos e o de outros países de diversas formas. Buscamos parcerias em pesquisa científica, como em computação quântica e desenvolvimento energético. Paralelamente, é verdade, enfrentamos disputas judiciais sobre questões de concorrência. Geralmente, conseguimos encontrar soluções e continuar oferecendo serviços valorizados pelas pessoas.

Afinal, os recursos de IA roubarão nossos empregos? Esta é uma questão fundamental. Algumas funções mudarão ou serão realocadas, como sempre ocorreu com novas tecnologias — o trator na agricultura, a máquina de escrever nos escritórios, a internet. É crucial notar que os empregos mais evoluem do que desaparecem. Um cientista da computação previu, e não faz muito tempo, que os radiologistas se tornariam obsoletos em cinco anos. Hoje, há mais profissionais utilizando IA para diagnósticos mais precisos e abrangentes. Aplicações complementares da IA como essas, especialmente no campo da saúde, devem ser a regra no futuro.

Do ponto de vista do cidadão comum, que procura trabalho e deseja mantê-­lo, como a IA pode ser usada? É vital incentivar o aprendizado e o uso eficaz dessas ferramentas, pois os trabalhadores mais produtivos serão aqueles que melhor as dominarem. Uma grande vantagem é a facilidade de aprendizado: a própria IA pode auxiliar o usuário a formular comandos (prompts) mais eficientes. A IA tende a nivelar as diferenças, ajudando os menos qualificados a atingir rapidamente um desempenho mediano. No Brasil, 68% da população acredita no impacto positivo da IA nos empregos, enquanto cerca de 15% expressam preocupação com a perda de postos de trabalho. Não podemos ser passivos. Temos colaborado com empresas e cidadãos brasileiros para maximizar os benefícios da IA. O Google Cloud, por exemplo, está capacitando 1 milhão de brasileiros em IA e computação em nuvem. Além disso, nossa ferramenta Gemini Pro estará disponível gratuitamente para universitários no Brasil até o final de 2026.

Continua após a publicidade

“Se um usuário quisesse que a voz de Taylor Swift cantasse parabéns para sua filha, deveria haver uma plataforma que viabilizasse isso. Estamos trabalhando nesses modelos de negócios”

No campo artístico, a IA terá impacto equivalente? A IA será uma ferramenta extraordinária para a criatividade. Recentemente, usei o Gemini para me ajudar a criar um discurso de casamento. Forneci informações sobre o casal e pedi um tom poético e reflexivo. Solicitei então que o adaptasse ao estilo do Rubaiyat, de Omar Khayyam, depois ao de William Blake e, por fim, em verso livre. Pude mesclar elementos de cada versão para criar um poema e uma reflexão que, embora contassem com minha contribuição, também se beneficiavam da vasta gama de palavras e poesia criadas pela humanidade. Isso é muito poderoso.

Muitos artistas, contudo, têm reclamado do uso de suas obras nas ferramentas de IA… Precisamos, também nesse ponto, encontrar um equilíbrio. Como os artistas originais serão recompensados? Não se pode exigir que todos os artistas e editores consintam individualmente com o uso de seu material para “treinamento” da IA, nem permitir que se bloqueie o desenvolvimento de novos modelos.

Continua após a publicidade

O que fazer, então, para agradar aos dois lados? O meio-termo, onde artistas possam optar por não ter seu conteúdo usado para “treinamento” dos robôs de IA, a menos que haja um acordo comercial. Se um usuário quisesse que Taylor Swift, ou a voz dela, cantasse parabéns para sua filha, deveria haver uma plataforma que viabilizasse isso, com a participação da artista e a alegria da criança. Estamos trabalhando nesses modelos de negócio e nas estruturas legais para incentivar esse tipo de interação.

Publicado em VEJA de 6 de junho de 2025, edição nº 2947

VER NA FONTE

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *